A participação de empresas sociais no ecossistema das casas de detenção representa uma mudança significativa na abordagem da execução de penas privativas de liberdade com vista a um sistema de justiça criminal mais sustentável e inclusivo. Este conceito inovador de empresas sociais procura criar um ambiente inclusivo focado no processo de reabilitação e reintegração, promovendo a integração através de atividades económicas e aproximando as pessoas privadas de liberdade da comunidade.

Através do projeto Inspire, a RESHAPE (que coordena o escritório nacional da RESCALED em Portugal) procura disseminar a interação entre a pequena escala de privação de liberdade e as empresas e negócios sociais, identificando os seus principais obstáculos e benefícios.

Embora não existam exemplos de casas de detenção em Portugal, existem noutros países, como Malta, Itália, Holanda, etc. alguns exemplos atuais de negócios sociais que podem ser explorados para identificar o seu possível papel no ecossistema de privação de liberdade em pequena escala e quais os seus desafios.

Assim, neste artigo, aproveitamos a oportunidade para conhecer o negócio social da Reshape Ceramics através de uma entrevista concedida pelo Diretor Executivo da RESHAPE, Marco Ribeiro Henriques.

A Reshape Ceramics é um projeto implementado em Portugal, mais especificamente no município de Oeiras, Lisboa, e é descrito como um programa de formação para pessoas que estão/estiveram privadas de liberdade, através do trabalho e da formação na área da cerâmica. Atualmente, emprega 7 pessoas e, desde a sua criação, 21 pessoas já trabalharam na Reshape Ceramics. Este projeto termina com a empregabilidade dessas pessoas enquanto cumprem as suas penas e, após a conclusão, ainda têm a oportunidade de permanecer ligados ao trabalho externo.

 

Em que se baseou a escolha do setor da cerâmica? O que deve ser considerado na escolha do setor de atividade?

A cerâmica surgiu como uma oportunidade quando decidimos iniciar um negócio social. Realizamos um estudo nos estabelecimentos prisionais de Lisboa e, de maneira pragmática, constatamos que a opção mais viável era utilizar uma oficina de cerâmica existente dentro de uma prisão, que possuía espaço e equipamentos adequados. Essa estrutura já existia, mas estava inativa há muito tempo. Foi dentro das prisões que descobrimos o potencial da cerâmica.

 

Como foi implementado?

O segredo é pensar num negócio social que funcione. Não é um negócio convencional; é social, com um escopo de intervenção económica que tem um impacto social. Portanto, é importante considerar o contexto, o espaço e as parcerias. Não estávamos à procura de um negócio completamente disruptivo e inovador que ignorasse o sistema onde seria implementado. Precisamos sempre de considerar as condições do terreno e o nosso espaço de trabalho está dentro do ambiente prisional. Isso requer uma abordagem cooperativa com o sistema para, no final, alcançar os impactos que nos propusemos a realizar.

 

É um negócio sustentável?

Depende da perspetiva. Socialmente, sim, é sustentável. Em relação à reincidência, nenhum dos participantes voltou para a prisão, pelo menos até onde sabemos. Economicamente, é um desafio significativo. Da nossa perspetiva, um negócio social deve ser autossustentável, ou seja, deve financiar-se a si mesmo. Tem de haver uma gestão profissional desde a produção até à venda de peças. O desafio é manter a estrutura e garantir o crescimento da receita, que nem sempre ocorre tão rapidamente quanto gostaríamos.

 

Quais são as fontes de financiamento que apoiam este tipo de negócio?

Este é um dos tópicos mais desafiantes. Tivemos financiamento inicial de uma fundação privada francesa que permitiu a compra de equipamentos de cerâmica com uma modalidade de financiamento muito importante: o fundo baseado em receitas, e que ajudou a evitar a pressão financeira, proporcionando uma dimensão interessante de monitoramento de negócios pelo financiador, além de um papel de supervisão. Para o desenvolvimento de negócios sociais é crucial ter abordagens financeiras definidas, uma vez que não é comum haver linhas de financiamento disponíveis para projetos sociais. Não há uma resposta única para essas situações, tanto no setor social quanto no nível estatal.

 

Existe algum tipo de colaboração com o Estado/Governo?

O Estado pode contribuir em outras áreas, como a contratação de pessoal através de medidas de emprego específicas, como estágios do IEFP (Instituto de Emprego e Formação Profissional). Embora essas medidas não sejam diretamente direcionadas ao setor social, podem oferecer oportunidades valiosas para o projeto. Outra possibilidade seria a redução de impostos para setores sociais, o que poderia facilitar significativamente a sustentabilidade financeira do projeto. Há um espaço significativo para desenvolvimento e melhoria nessas áreas, representando importantes oportunidades de colaboração e apoio mútuo entre o projeto e o Estado.

 

Quais são os benefícios deste negócio social para os participantes? E para a comunidade?

Um dos principais sucessos do projeto é ligar pessoas privadas de liberdade ao mercado de trabalho, muitas vezes excluídas dessa dinâmica funcional. Essa integração proporciona uma convivência pacífica com práticas de trabalho, como hierarquias, profissionalização e formação. Essa iniciativa é crucial tanto para os indivíduos envolvidos no projeto quanto para a comunidade em geral. Proporciona um espaço seguro e de apoio durante a fase de reintegração, auxiliando-os na transição para outras oportunidades de emprego. Além disso, tem um impacto significativo ao apoiar indivíduos vulneráveis e ajudar a prevenir novos conflitos com a lei. Para a comunidade, o projeto serve como uma ferramenta valiosa para aumentar a conscientização sobre valores sociais, profissionais e pessoais, contribuindo para a importância da reintegração social. Ao incentivar o envolvimento da comunidade na compra de produtos feitos por indivíduos privados de liberdade, também estimula a mudança no sistema prisional.

 

Quais são os obstáculos à manutenção de um negócio social em contexto prisional? E lá fora?

O principal obstáculo é o vazio legal, que representa um risco significativo para a implementação de negócios sociais. Além disso, a cultura do sistema, tanto em termos de estrutura institucional quanto de recursos humanos, muitas vezes apresenta uma visão antagónica, resultando em barreiras significativas que é preciso superar. O sistema prisional muitas vezes está demasiadamente afastado em relação ao mundo exterior, exigindo esforços adicionais para superar esses obstáculos e promover mudanças eficazes.

 

Como são selecionados os indivíduos para trabalhar no negócio social?

Para nós, todos têm um talento que pode ser trabalhado. Embora as vagas sejam limitadas, ao selecionar, priorizamos critérios como disponibilidade pessoal e interesse em fazer parte do processo. Não impomos restrições ao tipo de crime que levou à reclusão, mas consideramos a duração da pena como um critério relevante. Preferimos recrutar pessoas que estão a cumprir penas (em vez de medidas preventivas), porque nos proporciona maior previsibilidade em relação ao comprometimento com o projeto.

 

As pessoas privadas de liberdade têm os mesmos direitos laborais em Portugal? (salário mínimo, férias, segurança social, etc.)

Legalmente, não há um contrato de trabalho estabelecido com os indivíduos privados de liberdade que trabalham connosco. As pessoas na Reshape Ceramics recebem um valor/hora proporcional ao salário que teriam se estivessem a trabalhar em liberdade  e, portanto, não é possível garantir benefícios de segurança social devido à sua condição. No entanto, as pessoas têm seguro contra acidentes semelhante ao que existe para atividades fora dos estabelecimentos prisionais.

 

Do ponto de vista social, quais considera serem os principais impactos deste tipo de atividade ao nível da reinserção social dos indivíduos?

Os indicadores de impacto do nosso trabalho são diversos. Em primeiro lugar, a ausência de reincidência entre os participantes do programa demonstra a eficácia da abordagem na promoção da reintegração social. Além disso, a empregabilidade dos indivíduos, juntamente com a estabilidade familiar e a saúde mental, são aspectos fundamentais que monitoramos de perto. Na Reshape Ceramics, fornecemos apoio psicossocial aos indivíduos após a sua libertação, que ocorre simultaneamente ao trabalho na oficina. Também consideramos o sucesso daqueles que já passaram pelo programa como um indicador de impacto.

A nível sistêmico, o sistema vê a Reshape Ceramics como uma boa prática a ser seguida, desafiando a implementação de iniciativas semelhantes. Além disso, observamos uma mudança na cultura institucional, à medida que o tema é discutido e há um envolvimento crescente de todas as partes interessadas. Essa mudança de mentalidade é essencial para garantir uma abordagem mais holística e eficaz para promover a reintegração social.

 

Qual a perceção da sociedade em relação a este trabalho?

Há uma perceção pacífica dos negócios sociais e de como eles se relacionam com os valores do trabalho. Isso especialmente sentido na forma como comercializamos as peças, procurando profissionalizar as vendas por meio de plataformas de e-commerce, em vez de depender apenas de feiras locais. Além disso, a normalização dos negócios sociais ao lado de outros produtos pode contribuir para aumentar a conscientização sobre a nossa iniciativa. Cada peça que produzimos é única, carregando uma personalização que destaca a importância e o impacto do trabalho realizado pelos participantes do programa.

 

Para criar uma empresa social que funcione no ecossistema de uma casa de detenção, quais seriam os primeiros passos para iniciar o processo?

É crucial ter uma predisposição para trabalhar em conjunto e de forma construtiva com a implementação da pequena escala de privação de liberdade e com os seus benefícios. Isso inclui a realização de estudos preliminares e a compreensão das necessidades da comunidade local e das nuances do ambiente das casas de reinserção, nomeadamente as suas regras, dimensões de segurança e condições de infraestrutura. Por um lado, é essencial reconhecer e respeitar as limitações inerentes a uma solução como as casas de reinserção . Por outro lado, é importante envolver a comunidade neste processo de uma forma que beneficie tanto os residentes das casas como o ecossistema local. Se a casa de reinserção for gerida pelos serviços prisionais, é essencial trabalhar de perto com o sistema, garantindo a participação de todas as partes interessadas na tomada de decisões. Só então podemos evoluir de maneira conjunta e eficaz, procurando resultados que sejam realistas e significativos.

 

 

Há claramente muito a fazer em relação à implementação de negócios sociais em Portugal e para enfrentar os desafios encontrados ao longo do caminho – aqueles experienciados pela Reshape Ceramics que também são reconhecíveis por outras empresas sociais e noutros países. Esperamos que, no futuro, outros projetos sociais surjam, contribuindo para a promoção da reintegração social de indivíduos privados de liberdade.

O INSPIRE – Incarceration & Social Purpose in Restorative Cities – é um projeto financiado pelo Programa Erasmus+ da EU e implementado pela RESHAPE e pelos parceiros: RESCALED (escritório europeu), Restorative Justice Nederland (Holanda), WayBack (Noruega) e RUBIKON (República Checa).

 

Ana Guerreiro & Chiara Serafini

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avental da Reshape Ceramics ao lado de prateleira com várias peças de ceramica